sábado, 23 de outubro de 2010

O que não se quer à vista 2

A aparição de Leonardo Boff na breve estada de Dilma Rousseff em Curitiba me lembrou uma série de raciocínios que acredito serem interessentes para o período em que vivemos. Isto envolve um dos temas que eu mais gosto: a religião. Em um escrito fantástico, que na verdade é uma transcrição de uma conferência, presente no opúsculo "Tempo de Transcendência", Boff explicitou muitas das idéias que me causaria grande impressão desde então. 

Deixando claro que vou me referir precipuamente ao cristianismo brasileiro, quero usar dois conceitos apresentados por Boff na obra mencionada para trabalhar a conjuntura sócio-política atual: refiro-me ao binômio epifania/diafania. Este dualismo representa maneiras opostas de se enxergar a existência de Deus, dois tipos distintos de exercitar a religiosidade. A epifania, de longe a predominante em todos os tipos religiosos, é aquele fundamento que coloca Deus no exterior. Nas palavras de Ludwig Feurbach em "A Essência do Cristianismo", o viés epífano postula um Deus "diverso do ser pensado, um ser exterior ao homem, ao pensamento, um ser real, um ser por si." O que Feurbach afirma é a cisão entre homem e Deus, o segundo estando na exterioridade, existindo sem que o primeiro exista, entidade diversa e independente. Pois a epifania é justamente a aparição do divino. Assim, em um modo epífano de viver a religiosidade, esperamos o Deus que está lá fora, esperamos a sua bênção, a sua mão abençoada a nos acalmar, seus gestos a nos impulsionar frente a uma dificuldade. Já a versão diáfana da religiosidade é de todo modo diverso: Deus não está lá fora, mas está dentro de nós, dentro de cada pessoa. Aqui  demanda-se justamente que toda a bênção seja fruto de uma ação humana, Deus não se manifesta independentemente já que se produz a partir do ser humano. Metaforicamente é a divindade "saindo" do ser terreno,  a materializar-se, de forma agora palpável, sob a forma de atitudes através da transparência humana. O ser humano torna-se transparente para que Deus se manifeste através do primeiro. Daí a denominação diánafa, vale dizer, aquilo que permite a passagem da luz, literalmente.

Diante dessas duas premissas, acredito que o viés epífano da religiosidade, embora não signifique necessariamente tudo o que vou dizer, é de fato eivado de um vício fatal: a passividade. Explico: se Deus é externo a nós, então todas as benesses são esperadas dele, ou seja, da exterioridade, de um canal praticamente e literalmente extraterreno. A lógica do milagre é um bom exemplo disso, como nos diz Feurbach, sendo uma total negação do processo vital. O milagre, segundo este autor, é um pulo de etapas necessárias a consecução de algo ou a criação de uma etapa logicamente impossível. Usando sua metáfora: sendo a vida um círculo no qual viver é percorrê-lo, o milagre é como pretender chegar a dois pontos deste círculo através de uma linha reta (milagre) e não atravẽs da linha circular (a vida em comum). Se Deus é externo, eu peço as bênçãos e espero. É claro que não há uma total inércia do indivíduo e muitas vezes o que é fruto de seu trabalho é tido como uma bênção. Também não nego a existências de milagres porque só a onipresênça e a oniciência me permitira tal posicionamento; apenas quero explicitar uma consequência prática da passividade. O que importa, fundamentalmente,  é que na epifania, o louvor a Deus fica em primeiro plano, sendo que a solidariedade acaba sendo encarada apenas como dever secundário, de muitíssima importância, pelo menos teoricamente, mas sempre aquém do dever de amar a Deus sobretudo. Há atividade para louvar o Deus externo, sobrando a passividade para os nossos iguais. O motivo pelo qual a epifania conduz a viver o amor secundariamente relatarei em seguida. Quero fazer ressalvas aos movimentos religiosos extremamente salutares na feitura de caridades, mas aqui falo não de alguns núcleos religiosos esclarecidos e sim levando em conta o grosso dos que se intitulam religiosos.

Se minha religiosidade é diáfana, no entanto, louvar a Deus é, inexoravelmente, amar o próximo, ou, nas palavras de Boff no ato das eminências culturais a favor de Dilma no Rio de Janeiro, "praticar o evangelho da solidariedade". Se Deus está presente em cada um e em mim, firmam-se as seguintes premissas: (1) Deus só se manifesta se eu for solidário, (2) só é possível louvar ajudando o próximo, já que Deus está também nele. Vejam vocês que nesta linha de espiritualizar não sobra espaço, ou este é deveras reduzido, para a louvar um ser externo e estranho a mim e aos outros seres humanos, que não precisa necessariamente de nós para existir. Louvar Deus é necessariamente agir solidariamente com o próximo. Não há alternativas. Na diafania, milagre não é excluído, mas, se acontece, faz parte de um processo de entrega humana muito maior. Em suma, praticar a religião é expressar o que há de divino em você e isto se faz praticando o que de mais sagrado e nobre há para o cristianismo: o amor. E este amor não é sozinho. Não se ama sozinho. É um verbo necessariamente transitivo! A intrasitividade do verbo amar nos conduz a uma solidão avassaladora, como nos contaria Mario de Andrade em belíssimo romance.

Pois agora, chego ao ponto crucial da questão. O Deus epífano, exterior que é, como qualquer um acima na hierarquia, exerce, ou pode exercer, indelevelmente, autoridade. E eis a consequência fatal do vício fatal: a potencialidade de manipulação. Se Deus é externo, ele pode ser qualquer coisa. A solidariedade pode perfeitamente ser relegada a um terceiro plano. E se Deus pode ser qualquer coisa, quem vai ditar o que ele é, o que ele significa, e, afinal, o que ele diz, o que ele sentencia, o que ele ordena? Se Imannuel Kant, nos idos do século XVIII, clamava para que o povo chegasse ao esclarecimento (Aufklärung), sendo isto, basicamente, a capacidade de pensar por si próprio e discutir principalmente os dogmas em geral, fica claro que nos tempos atuais o objeto do clamor ainda é perfeitamente o mesmo. Os dogmas não se discutem, as idéias são impostas, não há pensamento autônomo e a massa religiosa fica a mercê de quem comanda, não uma religião, mas a instituição política na qual se transformou a religião, pelo menos no Ocidente. Deus é o que os pastores, padres, bispos, Papas e demais autoridades dizem que é. Porque ele é externo e, portanto, apropriável. Ao contrário, parece-me, que a única autoridade do Deus diáfano é a autoridade do amor e da solidariedade.

Vejam que eu não reputo o Deus epífano como necessariamente maléfico mas afirmo sim, com extrema segurança, que tal viés é extremamente frágil, sucetível de apropriações em função de objetivos escusos ou a fundamentalismos. Os líderes religiosos passam a movimentar as massas que, passivas, assistem e aderem ao espetáculo que, muitas vezes, emerge com laivos de indiscutível perversidade e crueldade. E isto porque o mais importante mandamento de Cristo é extremamente difícil e requer atividade e não passividade: amar o próximo, muitas vezes, beira os limites da abnegação, do extremo despreendimento, da incondicionalidade. Efetivá-lo muitas vezes é das tarefas mais hercúleas. Se Deus já é externo e me encontro em posição passiva, amar é uma coisa difícil que tem espaço somente na leitura bíblica e na confraternização entre os membros da própria igreja, ou às vezes nem isso. Se amar passa a ser algo indigesto, como louvar o Deus epífano? Resta basicamente seguir regras de moral inscritas no livro sagrado que, é bom lembrar, é de certa antiguidade. O notável professor de filosofia da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná Celso Ludwig dá uma breve e competentíssima explicação acerca deste assunto. Diz o mestre que "fazer uma leitura anacrônica de algo antigo é lê-lo como se lia à época de sua criação. De outro modo, fazer uma leitura diacrônica e diatópica é ler algo antigo atualizando-o de acordo com o tempo em que a leitura é feita." Ora, temos que, na maioria dos casos em tela, a leitura de tais regras morais eleitas pelos fiéis é de um anacronismo rasgado. E tais regras, para a tristeza de Kant, jamais são discutidas. Sobre isto, Celso Ludiwig diria que "o fundamentalismo é uma atitude sobre os fundamentos de algo. Basicamente é ler os fundamentos como dogmas, leis sobre as quais não nos é dado discutir". Soma-se então o anacronismo, fundamentalismo e imposição e temos a fórmula das tragédias religiosas ao longo das eras. A tolerância, no caso em tela, é o único freio para impedir a crueldade. Temos aqui a resposta para o porquê do amor ser vivido secundariamente sob a influência do Deus epífano.

Em uma vivência religiosa na qual o amor aparece em posição de menor importância, é necessário eleger critérios para distribuição de benesses por parte do Deus epífano, exterior. Serão as regras morais, de condutas, todas carregando em seu bojo as características descritas supra. Por conseguinte, melhor cristão será aquele que melhor atende às condições estabelecidas neste esquema de mérito e, como não se tratará obviamente da conduta solidário-amorosa, serão aqueles mandamentos morais que os líderes escolherem. Para a diafania, não há escolha: o louvor é a ação solidária, a amizade e o amor. Se Deus está no outro, só no outro é que encontrarei o divino. Ao contrário da epifania, que deixa escolhas na quais geralmente se prefere, entre o certo e o fácil, o caminho menos espinhoso; escolhas estas passíveis de desvios de cunhos dos mais diversos possíveis, nem sempre saudáveis.

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Disse que esta discussão se ligaria à conjuntura sócio-política da atualidade e agora pretendo demonstrar esta conexão. Acredito ser possível entender a onda de fundamentalismo e ódio religioso movidas contra a candidata do PT se entendermos a função religiosa nos moldes do esquema epifania/diafania. Aqui, de modo algum quero identificar Dilma Rousseff com qualquer tipo de messianismo ou de ligação com salvação. Quero, contudo, afirmar minha crítica a este modo pouco produtivo, pouco inteligente, pobre e potencialmente cruel de viver a religiosidade, sobretudo a religiosidade cristã no Brasil. Forma esta que não somente propicia mas como convida ao ensetamento de práticas de perseguição cruéis, não só contra a candidata do PT, mas contra gays, lésbicas,  não dizimistas, divorciados, mulheres que abortam e todo o tipo de gente que não se enquadra nos termos morais eleitos como chave do portão do Éden.

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Em tempo 1

Quero parabenizar a Carol por ter abraçado (duas vezes) e ter tido um dedinho de prosa com este sujeito admirável que é Leonardo Boff na esquina do prédio histórico da UFPR, no, que já é notório e festejado, dia 21/10/10. Queria ter estado presente mas, de alguma forma, senti que me fiz presente através dela.

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Em tempo 2

Quero também agradecer a manifestação de apreço por parte do Prof. Guilherme e dos demais colegas que se aventuram por aqui. E por falar no Prof. Guilherme, indico para leitura sua ótima e sucinta análise de como se deve ler, saudavelmente, o bolinhagate: http://prof-guilherme.capesp.org/?p=619. Também parabenizo a feitura do manifesto pró-Dilma em Mongaguá! Que venham dias melhores!

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